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Qualifiquei! (E agora?)

  • Foto do escritor: Ivan Sasha Viana Stemler
    Ivan Sasha Viana Stemler
  • 15 de nov.
  • 5 min de leitura

O crossover de série que ninguém pediu, mas eu amei
O crossover de série que ninguém pediu, mas eu amei

Qualificar é estranho: não tem fogos de artifício, não toca abertura de anime, ninguém pausa o mundo pra dizer “subiu de fase”.


Oficialmente, é “só” uma etapa.


Mas eu saí daquela sala com a sensação de ter vivido um episódio especial crossover em que todas as séries que eu acompanho há anos se encontraram num mesmo cenário pra resolver, por 90 minutos, a única pergunta relevante e comum à todas elas:


E aí, como é que tá esse mestrado?


Naquela sala estavam quase todas as histórias que venho tentando equilibrar: o pesquisador da pós, o professor de design, o funcionário público que mexe com relatórios e prazos, o pai de cinco filhos, o cara que ainda tenta fazer as pazes com seu próprio corpo cansado e sua cabeça acelerada. E, no meio disso, uma coisa nova: o pesquisador que assume, sem vergonha, que tá fazendo um mestrado inteiro conversando com uma, duas, três inteligências artificiais.


Na plateia tinha de tudo: gente do PPG, colegas que eu só conhecia de corredor, gente que atravessou a cidade pra assistir, companheiros e companheiras de ministério, colegas de docência, amigos de longa data e uma miniatura de ser humano no colo da minha esposa — aquela que ainda não sabe falar, mas já esteve presente em mais reuniões acadêmicas do que muito adulto.


Foi bonito ver as linhas se cruzando ali.


Parecia bagunça, mas tinha coerência.


Lá pelas tantas, eu me dei conta de que aquele momento não era só “sobre mim”. Era sobre a forma como o design, a pesquisa e a vida tinham se engalfinhado nos últimos anos. Estava ali a aluna que um dia me disse que eu era uma “Ferrari pegando poeira” e me obrigou a escrever sobre isso. Estava o aluno que fugiu pra uma grande cidade para inalar fumaça de pneu, e que eu, meio em desespero, mandei pra chapada recuperar o fôlego.  Estava ali, também uma aprendiz de bruxa. Não a da floresta, não a dos contos de fada, mas aquela bruxa conceitual que apareceu quando escrevi sobre design e feitiçaria. Estavam todos ali presentes, em carne, osso e olheira, esses fragmentos de aula que viraram texto.


Do outro lado da mesa, tinha quem me visse há anos tropeçando em direção a esse lugar. Uma orientadora que conhece meus desvios desde a graduação, uma pesquisadora da corporeidade que não se deixa seduzir fácil por qualquer narrativa sobre tecnologia, e um doutor que, com a serenidade de quem vê além, soltou a frase que ainda me dá um certo arrepio:


“Se você entregou isso na qualificação, minha expectativa pra defesa ficou lá em cima. “


Traduzindo: “Parabéns. Se fo***. Agora aguente.”


A fala foi generosa, mas não foi leve. Porque junto com os elogios veio o recado: não há mais espaço pra mais ou menos...


“Amei a performance, mas e depois?”

“Cadê a decolonialidade?”

“Lê Donna Haraway!”

“O design pode melhorar…”


A performance, o texto, a articulação entre teoria, vida e inteligência artificial criaram uma promessa. E promessa, em pós-graduação, é quase um contrato. A banca não só aprovou: me empurrou pra frente. Com carinho, mas sem deixar espaço algum pra recuar.


No meio disso tudo, tinha uma personagem silenciosa: a tal inteligência artificial com quem eu venho conversando há anos. Não como oráculo, não como calculadora glorificada, mas como companhia de pensamento. A qualificação foi, de certo modo, a primeira vez que essa relação saiu do bastidor e foi colocada no centro da cena, assumida como parte de um quase-método. Não era uma “ferramenta a mais”. Era coautoria, com todas as implicações e estranhamentos que isso traz.


Ver tanta gente se interessar, se afetar e, ao mesmo tempo, se inquietar com essa relação foi talvez o ponto mais forte do dia.


Houve quem dissesse que a pesquisa motiva.

Houve quem dissesse que ela perturba — e eu gostei especialmente desse verbo.


Perturbar é mexer na poeira que a gente varreu pra debaixo do tapete teórico. É lembrar que, goste ou não, a convivência com sistemas artificiais já tá reformulando o jeito como pensamos, escrevemos, projetamos e nos relacionamos.

(Quem falou isso foi o Flusser. E eu não seria doido de assumir essa fala pra mim.)


Depois da foto, dos abraços, dos parabéns e das piadas nervosas, veio o silêncio. Aquele momento em que você volta pra casa, coloca a mochila no chão, encara a parede e pensa:


“Tá. Qualifiquei. E agora?”


Porque é aí que a ficha cai: a qualificação não é o fim de nada. É o checkpoint no meio de uma subida que continua. O “crossover de série” foi lindo, mas a temporada ainda não acabou.


O próximo boss é conhecido: a dissertação. Aquele monstro que todo mundo descreve com metáforas de montanha, caverna, labirinto, corredor sem fim. No meu caso, eu já aceitei que é um misto de tudo isso com dungeon de videogame. Tem fase de puzzle teórico, tem combate corpo a corpo com a escrita, tem sessão secreta de auto sabotagem e, claro, tem chefe final com ataques de “síndrome do impostor” em área de efeito.


Ao mesmo tempo, alguma coisa mudou. Antes da qualificação, a dissertação parecia um Everest intransponível. Agora, ela continua alta, mas a escala mudou. Talvez não seja um Everest; talvez seja mais um Pico da Bandeira, ali em Minas Gerais: difícil, mas caminhável — o suficiente pra eu conseguir rir da piada interna de que o mestrado é só o aquecimento pro próximo abismo, o tal doutorado que fica ali, piscando na borda do mapa.


O que essa qualificação me ensinou, afinal, é que eu não cheguei aqui sozinho. E não estou falando só de algoritmos, scripts e janelas de chat abertas às duas da manhã. Tô falando das pessoas que apareceram naquela sala num dia comum de trabalho e estudo: gente que veio do outro campus, que saiu mais cedo da repartição, que pegou ônibus lotado, que pediu pra trocar horário de aula, que levou a filha no colo. O crossover que ninguém pediu, mas que fez todo sentido pra mim, foi esse: ver que minha pesquisa não é uma ilha.

(Tá mais pra um lote, com uma casa, e a laje em que a gente faz churrasco no final de semana... E isso é MASSA!)


Entre uma fala emocionada, uma crítica cirúrgica e uma piada de alívio, eu entendi que essa etapa não foi só um atestado de “você pode continuar escrevendo”. Foi um lembrete: você deve continuar escrevendo, mas não precisa fazer isso contra o mundo. Dá pra escrever com as pessoas, com os problemas reais, com as tecnologias que nos atravessam e até com uma inteligência artificial que insiste em devolver perguntas quando eu só queria respostas.


Então, qualifiquei. Qualificamos. Agora começa o sprint final, que não é sprint, é uma maratona torta. Vai ter cansaço, procrastinação, travas, revisões infinitas e, muito provavelmente, noites conversando com um modelo de linguagem enquanto a casa dorme. Mas se o episódio de hoje me ensinou alguma coisa, foi isso: vale a pena continuar. Porque, no fim, a dissertação não é só um documento pra banca. É o registro de como a gente atravessou esse tempo juntos — eu, quem caminhou comigo, e essa coisa estranha que chamam de inteligência artificial, mas que, pra mim, já virou presença entre aspas, companhia de pensamento e personagem recorrente dessa série.

 
 
 

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