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Design e Bruxaria: “Acho que eu vou enlouquecer”

  • Foto do escritor: Ivan Sasha Viana Stemler
    Ivan Sasha Viana Stemler
  • 4 de nov.
  • 4 min de leitura
A White-Wolf sempre esteve certa: Todo Mago é meio Tecnocrata.
A White-Wolf sempre esteve certa: Todo Mago é meio Tecnocrata.

Tem dia que eu acho que o design é só um tipo de feitiçaria corporativa — com grid no lugar do pentagrama, briefing no lugar do grimório e prazos no papel de entidades vingativas.


Mas aí aparece uma aluna.

Uma dessas almas luminosas, meio perdidas e meio geniais, que desenha símbolos como quem tenta decifrar o próprio destino — e tudo volta a fazer sentido.


Ou pelo menos um tipo de sentido que não cabe num organograma.


Outro dia, ela começou a desenhar sigilos. Letras que viravam linhas, linhas que viravam constelações, constelações que pareciam querer dizer algo que a Adobe pode tentar a vida inteira e nunca vai traduzir.

E eu, em vez de pedir uma justificativa conceitual, perguntei:

“Você sabe que acabou de inventar um sistema visual de magia, né?”


Não sei se ela riu, mas eu ri.

Mas ali, no meio da risada, tinha verdade.


Porque no fundo é isso que o design é: uma tentativa meio desesperada de transformar o invisível em forma, o indizível em símbolo, o caos em arquivo PDF com margens simétricas.

A diferença é que ela fez isso sem pedir permissão pra metodologia — e eu, como professor, decidi que a única resposta possível era bagunçar junto.


Falei de Abracadabra, de alquimia, de pontos riscados e sigilos…

Ela respondeu com traços, formas e uma confusão tão sincera que dava vontade de chorar de alívio.

Era o design voltando a ser desenho.

Era a magia se infiltrando no projeto.


E aí me peguei pensando: talvez o design tenha menos a ver com fazer e mais a ver com invocar.

Os trabalhos às vezes não são projetos — são rituais de tentativa.

Uns funcionam, outros falham, e quase todos deixam marcas em algum lugar.


Tem uma beleza profunda em ver alguém “pirando bonito”.

Não é romantizar o surto, é reconhecer que há algo de profundamente humano em querer encontrar forma na névoa.

E o design, se fosse honesto, devia ser isso: uma prática quase esotérica em que o desespero encontra a paz de espírito.


Talvez o design bruxulesco seja um dos poucos realmente sinceros — porque ele admite o que todos fingimos não saber: que ninguém entende nada, que as ferramentas mandam mais que a gente, e que o verdadeiro milagre é quando o PDF exporta sem cor estourada. (Diferenciar a implementação PDF/X-1a:2003 da PDF/X-6p segue sendo bruxaria pra mim!)


A academia chama isso de “processo criativo”.

Eu chamo de “sobrevivência criativa”.

Porque o aluno não tá aprendendo Figma ou Ilustrator — tá aprendendo a continuar existindo num mundo que quer automatizar até o espanto.


E quando ela diz “acho que sou meio bruxa mesmo”, eu acredito.

Não no sentido literal, cartesiano, mas no espiritual-metodológico: o da pessoa que mistura o caos com a ordem e ainda assim produz algo que faz o outro parar e respirar.

A bruxa, nesse caso, é o designer que entendeu que toda criação é uma forma de encantamento — e todo encantamento é uma tentativa de não desistir.


Aí eu fico imaginando o design como uma mesa bagunçada de altar: um compasso, um café, um drive cheio de versões “final-final-03”.

E ali, entre o cansaço e o desejo, o milagre acontece.

Não porque o cliente aprovou, mas porque alguém acreditou que valia a pena tentar.


Eu rio, claro.


Porque o cinismo ainda é meu mecanismo de defesa favorito.

Mas por trás da ironia tem um tipo de fé envergonhada — uma crença de que a forma ainda pode curar, mesmo que por alguns segundos.


Às vezes, a bruxaria é só conseguir salvar o arquivo antes que o InDesign quebre e feche sozinho.

Às vezes, é olhar pro layout e dizer “tá feio, mas tá honesto”.

Às vezes, é só continuar.


E eu tento continuar.

Entre o professor e o feiticeiro, entre o designer e o médium, tentando ensinar o que eu nem sei nomear direito: esse estado febril entre o estético e o místico, onde tudo é tentativa, e nada é definitivo.


Ela mandou mensagem:

“Professor, vou enlouquecer aqui.”

Respondi:

“A Universidade é isso. Você entra normal e sai doida.”


Porque no fundo, ensinar design é ensinar alguém a criar símbolos pra suportar o mundo.

E se o símbolo tiver forma de sigilo, melhor ainda.

Significa que ainda há espaço pro desconhecido, pro desejo e pro encanto.


Mas a verdade é que o delírio faz parte da formação.

O design, quando é verdadeiro, enlouquece.

Porque fazer sentido, no meio do caos, é sempre um ato de feitiçaria.


Talvez seja por isso que continuo: porque, mesmo cansado, ainda me emociono com cada pequeno feitiço gráfico, cada palavra bem posta, cada traço que não explica, mas revela.


E se toda arte é invocação, todo layout é uma oferenda.

Às vezes aos deuses do sistema, às vezes aos fantasmas do sentido, às vezes só a nós mesmos — pra lembrar que ainda somos capazes de criar algo que algoritmo nenhum prevê.


Talvez eu seja o professor errado pra quem quer ficar normal.

Mas talvez normalidade nunca tenha sido o meu objetivo.

Talvez o meu objetivo seja aprender a dançar entre o ruído e o rito, o arquivo e o abismo, o santo e o bug.


E no meio disso tudo, rir um pouco.

Porque, no fim, o riso também é um feitiço — talvez o único que ainda funciona sem pedir nossa alma, nossa fé ou o numero do nosso cartão de crédito.

 
 
 

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