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Anti-Manual de Design Contemporâneo: A espiritualidade do briefing

  • Foto do escritor: Ivan Sasha Viana Stemler
    Ivan Sasha Viana Stemler
  • 30 de out.
  • 3 min de leitura

O cliente chega e diz:

“Eu quero algo moderno, mas clássico. Impactante, mas leve. Diferente, mas simples. Inovador, mas que lembre a concorrência.”


"Antigos espíritos do mal, transformem essa forma decadente em Mumm-Ra, o eterno!"
"Antigos espíritos do mal, transformem essa forma decadente em Mumm-Ra, o eterno!"


E você, médium cansado de uma religião que nem acredita mais, abre o Canva, o Photoshop ou o Miro como quem abre um portal.

Respira fundo e pensa: “Vamos tentar invocar o espírito do bom senso, se é que ele ainda caminha entre nós.”


O briefing, meus caros, é o nosso texto sagrado — só que escrito em língua morta.

Cada palavra é uma parábola, cada contradição um teste de fé.

“Minimalista, mas com bastante informação.”

“Colorido, mas sem ser infantil.”

“Luxuoso, mas que pareça acessível.”


O designer lê e traduz, balbuciando como xamã de agência:

“Entendi perfeitamente.”

(Mentira. Ninguém entendeu porra nenhuma. Mas é assim que se invoca o job.)


A reunião começa como uma missa.

Tem o cliente, o coordenador, o estagiário, o PowerPoint e o demônio do prazo rondando o ambiente.

O designer, esse pai-de-santo da gambiarra, apresenta seus slides com fé e a certeza que o Orixá do Pitching está ao seu lado.

E o cliente, no papel de oráculo, fecha os olhos, sente o espírito do marketing descendo e diz:


“Não sei o que é, mas não é isso.”


E lá vai o exorcista do Illustrator tentar expulsar o mal da paleta errada, da tipografia que “cansa o olhar” e do logo que “precisa respirar mais”.


Respirar mais o quê, meu filho?

O projeto já tá em coma.


No fim, o que a gente faz é necromancia: ressuscita conceitos mortos, refaz layouts esquecidos, e reanima ideias que o cliente jurou que queria enterrar.

E, no milagre da iteração, transforma o impossível em “versão final (agora vai).pdf”.


A espiritualidade do briefing é isso:

uma uma fé que a gente não escolheu, mas segue praticando.

Um culto coletivo à ilusão de que existe clareza no caos.

Porque, no fundo, todo designer é um crente do improvável: acredita que, com tempo e café, dá pra transformar confusão em conceito.


E é por isso que seguimos aqui, batendo ponto na agência-templo, acendendo incenso de deadline e oferecendo sacrifícios ao deus dos feedbacks.

Uns oferecem o sábado, outros a sanidade — e os mais devotos entregam o arquivo aberto.


De vez em quando, o milagre acontece.

O cliente gosta, o coordenador aprova, o banner vai pro ar.

E a gente, exausto, chora um pouco de alívio e diz:

“Amém. Até a próxima possessão.”


Porque o design, no fim, é isso: mediunidade aplicada.

A habilidade de canalizar o indizível, traduzir o impalpável e fingir que é tudo parte do processo criativo — quando, na real, é só sobrevivência disfarçada de transcendência.


E lá vamos nós, de novo, abrir o Figma e dizer com voz de quem já viu demais:

“Vamos tentar captar melhor a energia dessa marca.”


Mas, cá entre nós…

A energia que a gente capta mesmo é a do cansaço coletivo de fingir sentido num universo feito de refações.


(A espiritualidade do briefing, meus caros, é acreditar que o próximo ajuste será o último.

E, mesmo sabendo que não será, abrir o arquivo assim mesmo — porque a fé move montanhas, mas o prazo move o designer.)”


[Este é o texto 3 da série Anti-Manual de Design Contemporâneo.

Uma coleção de crônicas escritas entre café, cansaço e ironia — sobre o design possível, o humano e o improvisado.

Não é guia, nem lição. É só um lembrete de que o caos também projeta — e que a dúvida, às vezes, é o software mais honesto que a gente tem.]

 
 
 

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